“Que se passou àquele homem?”. Isto nos é perguntado pelo narrador da história de um homem que, sem se saber o porquê, se pega a chorar em meio à leitura de um livro. “Que se passou àquele homem?”: curiosidade tão simples, necessidade tãomente imensa dos viventes. Há de ser por isso que diga um senhor, de honorável ofício, que “o homem conta histórias como protesto contra a sua finitude” [Fernando Catroga].
Contra a sua e contra a dos outros que lhe rodeiam. Não só no seu tempo, mas também naqueles que se findaram, dos quais não temos mais que parcos rastros (círculos de ossos, rabiscos esfarelentos), dispersos fragmentos com os quais vamos tentando responder: que se passou àquele homem?, àqueles tantos que mais não têm que essa genérica e contundente nominação: homem, humana criatura.
Um homem só mais seu cão aos pés, uma desgraçada mulher-a-dias, um estudioso do horror, o justo assassínio de um morto, um fundidor de metais, uma humanidade desaparecida, a história de uma outra igualmente findada: essas são algumas das histórias, alguns dos protestos de quem conta (imagina) essas vidas contra a finitude, contra o sabido esquecimento de seus rastros (inda que de escritura) pelo mundo.
O contar (o corpo de escritura) deste Como um cão que sonha a noite só traz-nos ao pensar (e ao sentir) esse protesto da vida contra a finitude, contra a solidão do existir contra o tempo. Nas vidas, nas pobres vidas dos que se escrevem (e se apagam) nessas páginas, o que lemos é mais que suas pequenas tristezas, seus gozos extemporâneos, suas coléricas resignações; o que temos enredado nessas vidas é o invisível fio da imaginação costurando essa força (que é “poder conjecturar além daquilo que se pode saber”, como dito por A. Manzoni) ao duro chão do viver, numa escrita que parece fazer questão de dizer, claro e alto, que “a literatura não nasce no vazio” [Tzvetan Todorov], que seu fio urdidor é sempre tecido nesses domínios partilhados (entre os viventes, entre o que têm a viver e o que podem dele imaginar).
“Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão” [Tzvetan Todorov]; somos todos essas mortais e pequenas criaturas, que “surgimos, de certo modo, a meio de uma conversa que já começou e na qual tentamos orientar-nos para fornecer-lhe o nosso contributo” [Paul Ricoeur]; somos todos esses cães que, apesar de tristes e sós, levam a cabo seus ofícios: o de guardarmos a manhã que há de vir. Por palavras outras dizendo: Como um cão que sonha a noite só é a escrita de um autor que não abdica de fazer de seu ofício um contributo a essa conversa a meio da qual nascemos – e a meio da qual partiremos.
COMO UM CÃO QUE SONHA A NOITE SÓ
Contos
Editora 7Letras [2010]
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